Como a gente encaixa o tempo livre no “novo normal”?
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O planejamento de 2021 e todo esse vaivém de ideias e ações em cima do trabalho remoto me fizeram refletir sobre como eu e outras pessoas temos lidado com o que seria nosso “tempo livre”. Como você pensa e age sobre o seu? Isso lhe aflige ou lhe conforta?
Com essas reflexões e com as referências do fim do texto, encontrei meu ponto atual: precisamos valorizar mais o nosso tempo. Livre ou ocupado, o tempo é um só, é um exercício diário das nossas escolhas e do quanto valorizamos o tempo que entregamos a outros e a nós mesmos. Isso é muito conceitual e talvez até um pouco vago, né? Vou tentar explicar melhor nos próximos parágrafos.
Pelo pouco que pesquisei, o tempo livre e os hobbies são crias da era industrial, a partir da qual o que não é tempo produtivo não é produtivo de maneira alguma — o que faz do “tempo livre” praticamente uma propaganda enganosa porque, longe de ser algo realmente a serviço do ser humano como um todo, é útil apenas ao próprio tempo produtivo, como forma de “recarregar” o indivíduo para o trabalho produtivo, seja biologicamente ou por meio de formação profissional indireta.
Assim, o tempo livre do trabalho industrial, que se estendeu às eras pós-industrial e tecnológica, não estaria conectado autenticamente à liberdade do ser humano ou ao seu benefício de forma prioritária, mas sim destinado à distração (lazer, entretenimento), aos passatempos (porque todo tempo que não é produtivo tem que passar logo), aos hobbies (aquilo que adoro fazer, mas não é “produtivo” o suficiente para pagar contas) e às fantasias de fuga temporária (férias anuais em lugares paradisíacos)¹.
Como encontrar o meio-termo?
Enquanto não amadurecemos para subverter as bases do tempo livre como conhecemos, temos que, pelo menos, usá-lo melhor.
A imposição do trabalho remoto para parte da sociedade nos deu um novo ângulo para tentar equilibrar um pouco mais essa relação com uma compensação sem culpa, que vai muito além do banco de horas legal.
O termo “tempo livre” pode ser melhor avaliado para abrigar o tempo dedicado ao ócio criativo e à autossatisfação, sem separar-se do tempo produtivo e, ao mesmo tempo, sem ser dedicado a ele.
Isso não significa, entretanto, que o tempo produtivo saiu perdendo. Ao contrário, abrimos uma janela para aumentar nosso prazer dentro do que já entregamos “produtivamente”, por meio da mudança de contexto, fora da operação do dia a dia e com outro foco. Isso ajuda nossa mente a exercitar-se e a encontrar conforto ainda dentro do que estamos fazendo.
Um tempo livre “misto”
Na tentativa de ressignificar do tempo livre atendendo à pessoa de forma mais plena, podemos ir pela Linha 1) realizar outras atividades também produtivas, porém não usando o mesmo foco nem as mesmas tarefas com a busca pelo mesmo resultado (em si ou uma versão incremental da performance anterior). Essa conexão alivia a pressão mental e dá às pessoas a chance de serem mais delas mesmas dentro do tempo produtivo. Exemplo: uma pessoa de liderança de projetos pode passar a usar parte do seu tempo sendo voluntária em um projeto social da empresa, por meio do qual sua satisfação beneficia a ela mesma e à empresa. Isso é comum e feito em muitos lugares, mas será que é visto realmente como algo positivo por todos com quem essa liderança trabalha?
A Linha 2) é mais recente e conectada com o que temos chamado (para chateação de alguns) de “novo normal”: fazermos nossas entregas com muito mais alinhamento com nossas próprias necessidades, sem negá-las nem fugir de nossas responsabilidades. Exemplo: não sentirmos culpa nem sermos constrangidos por estarmos trabalhando da praia; ou porque a filha/filho precisam de atenção naquele momento. Se estamos com nosso trabalho e reuniões em dia, ficarmos à vontade para tirar um cochilo no meio da tarde; ou treinar futebol às 15h; ou ler um pouco de ficção no meio do dito expediente… enfim equilibrar as coisas.
Há, ainda, a Linha 3), parecida com a 2 que seria estar fazendo algo relativo ao trabalho dentro do que seria o tempo livre sem prejuízo ao total do tempo livre². Haveria um acordo, uma garantia de que o tempo do trabalho não vai suprimir o tempo de autossatisfação e autocuidado — ou porque faz parte dele ou porque o permite. Imagine que uma pessoa analista em uma empresa cuida de um assunto profissional na manhã de sábado e, por causa disso, compensa esse momento passando a manhã na praia na quarta-feira seguinte. Em uma compensação ideal, essa pessoa não precisaria ficar constrangida em dizer que vai à praia no meio da semana, tampouco ficaria chateada por ter trabalhado na manhã de sábado. Um trecho de uma entrevista dada por Leandro Karnal pontua a importância de paradas cotidianas: “Você terá de parar, ou porque planeja isso ou porque seu corpo o obrigará ou por colapso mental. Assim, é inteligente prever paradas que não precisam ser férias caras com planilhas de atividades. Parar, meditar, ler, sem compromisso. Parar, verbo sem complementos. Parar para não ser parado.”³
É possível pensar em tempo livre com contagem de horas?
Ainda assim, esse pensamento de compensação sem culpa é, de certa forma, industrial, porque contabiliza horas, faz contas sobre o tempo e corre o risco de não sair dessa caixinha. No exemplo anterior, seria algo como “Vou usar X horas com esse assunto profissional na manhã de sábado, então posso usar até X horas para ir à praia na manhã da quarta-feira”. Com isso, corre-se o risco de valorização maior da contagem em si, em detrimento da performance ou da missão do time e da pessoa.
Mas acredito que ainda não estamos prontos mentalmente e juridicamente para abrir mão desse tipo de raciocínio de trocas em moedas (neste caso, horas ou o seu equivalente). Sem falar que toda essa linha ainda precisa passar pelo filtro do alcance da autonomia e pela interdependência entre as pessoas de um time e entre times. Será que todos, líderes e liderados conseguem lidar “com essa tal liberdade”? Como adequar os ajustes individuais às necessidades da interdependência, sem a qual não conseguimos construir juntos? Como dar autonomia sem contar horas? Se, de um lado, corremos o risco de usar o cansaço como justificativa para a fuga da realidade, a procrastinação e negação da própria responsabilidade; do outro, é fácil cair na armadilha contemporânea do excesso de positividade e da romantização da exaustão³
Penso que a educação para relacionamentos assíncronos pode ser uma grande aliada, assim como a visão de que contagem de horas é um modo de analisar performance e não de vigiar a disponibilidade alheia.
E o que mais podemos fazer?
Aceitemos os tempos livres individuais e coletivos
Encaixotar o tempo em caixas distintas pode dar a falsa impressão de que somos pessoas diferentes para tempos distintos. Por outro lado, a vida é plural em seus aspectos, traz muitos em uma só vida, um só tempo. Precisamos entender nosso trabalho como parte essencial da vida, mas não seu único objetivo, tampouco como único destino digno do nosso tempo produtivo. Do mesmo modo, a vida está no trabalho, de forma indissociável (como missão), mas este é incapaz de conter todos os aspectos da vida.
Sob esta lente, também precisamos aceitar que o prazer, a satisfação, a alegria e até mesmo a felicidade podem estar conectadas ao trabalho, sem prejuízo para a entrega final (ao contrário, em seu benefício), porque as pessoas são beneficiadas e impactadas diretamente com o valor que geram em suas entregas.
Além disso, temos que buscar compreender que o trabalho pode dar espaço ao tempo livre não só das personalidades individuais, mas também da “personalidade coletiva”, da qual participam junto com a comunidade/empresa de que são parte e com a qual compartilham a satisfação.
Essas duas personalidades precisam dos seus respectivos ócios aceitos e respeitados. Para isso, seria necessário não apenas a revisão, mas também a reflexão sobre atitudes, processos e reações diante do ócio criativo individual e coletivo, assim como uma maior atenção à conexão do indivíduo com o valor gerado pelo seu trabalho.
Precisamos de mais intervalos de recuperação entre as férias
Uma reflexão adicional é sobre a carência do tempo livre, independente de como o conceituamos. Por que estamos tão sedentos? Será que queremos mesmo não fazer nada ou estamos “só” cansados mentalmente?
Acredito que precisamos de mais intervalos e de paradas estratégicas ao longo do ano. Em vez de sofrer a cada domingo à noite ou esperar um ano para “fugir”, “desconectar”, poderíamos ter mais espaços de alívio mental ao longo dos meses, como pausas de recuperação. E esses intervalos não deveriam esperar um ano para acontecer. Há especialistas que recomendam, inclusive, que haja períodos mais curtos de férias, porém mais períodos de férias. Aliás, desde 2017, a CLT permite que as férias sejam dividas em 3 (e não somente em 2), sendo um período de 14 dias, um de 9 dias e um de 7 dias¹.
“Mas, espera aí, Emídia, você agora está defendendo o tempo livre como propaganda enganosa, como forma de ‘recarregar’ o indivíduo para o trabalho produtivo?” Sim, hipocrisia, talvez; mas, digamos, uma hipocrisia benéfica e temporária. Vamos usando o tempo livre que temos.
Uma vez que ainda não conseguimos reduzir os estresses e desgastes “crônicos”, precisamos nos esforçar para que existam mais espaços de recuperação de energia, com descanso e com a recompensa do reconhecimento pelo valor do trabalho contínuo.
Outro benefício desse formato é preparar as pessoas e o ambiente para estresse agudos, que são grandes desafios para suas habilidades técnicas, gerenciais e comportamentais. Desafios (espera-se) espaçados, mas que determinam nossos próximos passos e também precisam de um tempo de recuperação e do reconhecimento do valor do resultado (mesmo que não seja positivo, se tiver sido o melhor possível, precisa de reconhecimento).
A teoria é boa, mas na prática…
Há uma estrada longa a ser percorrida por líderes e times — em especial os de empresas já estabelecidas — para que o tempo livre seja mesmo livre e, um dia, seja uma realidade sem desconfianças ou desconfortos. Importante dizer que, quando escrevo em primeira pessoa do plural aqui, não estou generalizado, estou me incluindo. Penso sobre minha atuação e na de com quem trabalho.
Ainda não tenho uma lista simples de “como fazer”, mas este texto é uma tentativa de entender melhor os caminhos à frente. Se a prática é difícil, sem reflexão ela se torna dura, oca e dispendiosa. Talvez eu leve seis meses, um ano ou dois para concretizar práticas mais significativas. Sobretudo porque ainda tem um outro assunto muito conectado a esse que é preciso tratar: a procrastinação, essa companheira-inimiga do ser humano moderno, totalmente conectada com nosso estado mental e nossa capacidade (ou à falta dela) para usar nosso tempo de maneira benéfica².
De todo modo, adoraria acelerar meu aprendizado com soluções validadas: compartilhe a sua :D
Referências
Artigos e posts
- Tempo Livre — Theodor Adorno
- Síndrome Pós-Férias: Mais do que Combatê-la, Saiba Vencê-la
- Um passeio pelo tempo — Silvio Meira
- Como vencer a procrastinação — Matéria sobre Tim Pychyl
- Descansar é estratégico — Entrevista da Gama com Leandro Karnal³
Livros
- Antifrágil — Nassim Taleb
- O ócio criativo — Domenico de Masi
- The Making of a Manager — Julie Zhuo
- Dar e Receber — Adam Grant
Observações
¹ Trechos atualizados em 23/5/2021; ²Trecho atualizado em 1/8/2021; ³Trechos incluídos em 5/9/2021
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